Grupo universitário Teatro Lusotaque de Colónia
Não foram apenas coevos. Muito nas suas biografias e obras os aproxima. Representam bem as suas línguas, são hoje em dia clássicos de estudo obrigatório nas escolas e, embora um mais na poesia e outro na prosa, os temas das suas obras e as suas vidas revelam «uma angústia profunda, uma ansiedade frente a um mundo exterior que é diferente do seu mundo interior».
Número 135 · 11 de Fevereiro de 2009 · Suplemento do JL n.º 1001, ano XXVIII
Através de uma colagem de textos dos dois autores, são apresentados «os delírios, medos, angústias, febre criativa dos dois autores», que a companhia considera «talvez dos mais universais nos mundos de Língua Portuguesa e de Língua Alemã».
NasciMente - KopfGeburten - é a designação do espectáculo, que alude assim, no seu título, ao «intenso trabalho mental» que une os dois autores, «do qual são fruto diversas personagens e um imenso projecto literário, capaz de ocupar mais do que uma vida», no dizer de Beatriz de Medeiros Silva, leitora do Instituto Camões (IC) na Universidade de Colónia e criadora da companhia em 2006.
A ideia de aproximar estes dois autores surgiu à leitora portuguesa de uma viagem a Praga. «À semelhança do que acontece com Pessoa e a cidade de Lisboa, o mesmo se passa com Kafka e Praga, são indissociáveis as cidades dos seus escritores, que as representam a vários níveis e são aproveitados exaustivamente pelo turismo», diz Beatriz de Medeiros Silva, que estudou o autor checo de Língua Alemã na Universidade, onde fez também Estudos Alemães.
Mas semelhanças são mais e mais profundas. «Pessoa, no mundo lusófono, tal como Kafka, no mundo de língua alemã, têm o estatuto de clássicos da literatura moderna/modernista, apesar de se terem tornado famosos só após a sua morte. Ambos são temas obrigatórios na escola portuguesa e alemã, e normalmente apreciados pelos alunos, em parte pela sua própria universalidade. Embora Kafka tenha escrito prosa e Pessoa fundamentalmente poesia, os temas dos seus textos parecem-se», enuncia Beatriz de Medeiros Silva.
Ademais, diz, «os dois tiveram profissões além da escrita: Kafka numa empresa de seguros, Pessoa em vários escritórios. E os dois tiveram relações com mulheres que acabaram mal - Kafka com três, Pessoa com uma só. Nem um nem outro foi capaz de comprometer-se, de deixar uma mulher entrar no seu espaço íntimo, ainda que o quisessem».
Para dar corpo a estas semelhanças, a direcção do espectáculo - que esteve a cargo de um quarteto de jovens alunos e mobilizou treze actores, uma equipa de música, outra de coreografia e um técnico de som/luz - recorreu a formas verbais e não verbais de representação, «em que entram elementos de dança e de música, de formas mais intimistas até cómico-grotescas, numa interpretação muito pessoal dos estudantes de Português da Universidade de Colónia», segundo a descrição da própria companhia.
O espectáculo foi a primeira apresentação do Teatro Lusotaque em que foi usado Alemão. «Como Colónia tem muitos habitantes portugueses, brasileiros e alemães lusófonos - por serem estudantes da LP ou terem passado um tempo em Portugal ou no Brasil -, o grupo tem e sempre teve um público lusófono/ lusófilo interessado», explica a leitora.
Sendo os textos de o autor de A Metamorfose e de O Processo originalmente em Alemão, «convinha» usar este idioma, segundo Beatriz de Medeiros Silva. O público pôde ser «mais vasto», abrangendo os não-lusófonos, recompensou a «fidelidade» dos espectadores que, não entendendo o Português, fizeram a experiência «extrema» de ver teatro numa língua estrangeira, e permitiu a actores mais inibidos com uma língua estrangeira falarem no seu próprio idioma, refere a leitora. «O confronto entre estas duas experiências revelou-se criativo e mais uma forma de encarar as próprias realidades pessoais dos estudantes participantes do grupo de teatro».
Flutuante na sua composição, o Lusotaque, afirma a leitora de Português na Universidade de Colónia, tem já um «núcleo duro», que se responsabilizou pela encenação de NasciMente - KopfGeburten, mostrando uma certa consolidação da companhia, consolidação essa que se tem também manifestado em termos estéticos. «As exigências estéticas têm aumentado consideravelmente, o trabalho é cada vez mais artístico», afirma, que já fora responsável pela criação de um outro grupo de teatro universitário - os Quasilusos -, quando da sua passagem por Freiburgo. Segundo ela, o Lusotaque faz já «parte da paisagem cultural da cidade de Colónia, uma das mais multi-culturais da Alemanha». «Recebemos constantemente convites para apresentar as nossas peças noutras cidades», revela. No II festival de teatro dos leitorados, realizado em Oeiras, entre 21 e 25 de Julho de 2008, o Teatro Lusotaque apresentou o espectáculo inQUIETudes, que partia de textos e poesias de Fernando Pessoa para tratar o tema do "Desassossego", desenvolvido em quadros acompanhados por música ao vivo. A dramatização de textos literários marcou as anteriores produções do grupo. No Verão de 2006, apresentaram uma noite de sketches, a que se seguiram as peças A Fogueira (sobre textos de Pepetela e Mia Couto), em Fevereiro de 2007, o Paraíso (baseada na obra de Miguel Torga), no Verão de 2007, e Vestido de Noiva (do autor brasileiro Nelson Rodrigues), em Fevereiro de 2008. Beatriz de Medeiros Silva, que chegou ao teatro «como interessada e passatempo, na escola e na faculdade», sublinha: «de todos os projectos que já desenvolvi no meu trabalho de leitora, o que trouxe mais alegrias e é, para mim, sem dúvida, o mais produtivo, o que traz uma aprendizagem mais efectiva, mais lusófona e mais consistente é o grupo de teatro universitário de LP». |