Maria Velho da Costa (1938-2020) Memórias do Camões

Publicado em sexta-feira, 19 junho 2020 16:08

Uma pessoa “única”, “extraordinária”, com “uma grande bagagem cultural” e “imensa graça”, “muito sedutora intelectualmente” e, na vida profissional, “rigorosa”, “criativa” e “de uma extrema competência”. De feitio “reservado” e “nem sempre fácil”, foi sempre uma figura marcante para quem a conheceu. Considerada uma das vozes renovadoras da literatura portuguesa desde a década de 1960 e uma das autoras mais importantes das últimas décadas, Maria Velho da Costa faleceu no passado dia 23 de maio, aos 81 anos, em Lisboa, cidade onde nasceu a 26 de junho de 1938. O encarte do Camões I.P. evoca a escritora e a sua colaboração com o instituto - que ocorreu em diversos momentos ao longo de mais de 20 anos -, ouvindo os testemunhos de Helder Macedo, José de Bouza Serrano e Margarida Lages.

A primeira colaboração com o Camões, I.P. (então ICALP - Instituto de Cultura e Língua Portuguesa) remonta ao ano de 1982, quando Maria Velho da Costa foi nomeada leitora de Português no King’s College da Universidade de Londres. A nomeação teve na origem um pedido formal de Helder Macedo, que, já na altura, era professor no King’s College, e para quem Maria Velho da Costa havia trabalhado como adjunta, no tempo em que foi secretário de Estado da Cultura, em 1979, no governo de ‘cem dias’ de Maria de Lourdes Pintasilgo. 

O pedido foi então aceite, como conta Helder Macedo: “Através do ICALP e com o apoio pessoal, extremamente generoso, do presidente Fernando de Melo Moser, criou-se o cargo de segundo leitor de Português no King’s College”. “Ela [Maria Velho da Costa] veio e em princípio ficaria só um ano, mas foi de tal maneira eficiente e trabalhou tão bem que ficou muito mais tempo”. 

Durante cinco anos, entre 1982 e 1987, como leitora de Português no King’s College, Maria Velho da Costa lecionou, tal como Gastão Cruz, os cursos gerais de cultura portuguesa. “Usavam os textos que queriam, incentivavam os alunos e davam uma visão panorâmica da cultura portuguesa, o que os ajudava a escolher nos anos subsequentes quais as cadeiras que queriam fazer do curso propriamente dito”, explica Helder Macedo. 

“Foi de uma extrema competência, pontual, dedicada. Foi realmente muito gratificante tê-la cá a trabalhar como professora. Ela não tinha tido grande treino de ensino, foi uma aposta na qualidade dela e não podia ter corrido melhor”, garante Helder Macedo. Além das competências profissionais e do vastíssimo conhecimento da língua, cultura e literatura 

portuguesas, destacou-se também pela relação que estabelecia com os alunos: “Era extremamente simpática, muito sedutora intelectualmente e conseguia criar uma relação de empatia muito grande com os alunos, que a adoravam”. 

Um ano antes de assumir o cargo de ‘leitora’, em 1980-1981, Maria Velho da Costa ocupara já o lugar de ‘escritora residente’ no King’s College, desta feita com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e do administrador responsável pelo serviço internacional, José Blanco. Para Helder Macedo, a relação próxima e generosa com os alunos era visível já nesse primeiro ano, quando, enquanto escritora, “falava basicamente sobre o que lhe apetecia”. “O trânsito de escritora residente para leitora foi muito fácil porque, no fundo, as funções acrescentadas do ensino da língua eram semelhantes”, observa.  

Importa referir que a autora de Maina Mendes já era conhecida pelos alunos do King’s College bem antes de lá ter chegado. Pelo menos os alunos dos cursos de ficção portuguesa, que Helder Macedo começou aí a lecionar em 1971, deveriam conhecê-la. “[Os cursos] terminavam sempre com uma obra de um autor ainda à margem dos prevalecentes critérios académicos. Nesse ano foi Passos em Volta, do Herberto Helder, no ano seguinte Maina Mendes, da Maria Velho da Costa. Era a minha aposta na dissidência de então como a norma de um futuro desejado”, escreve o também escritor e crítico literário, num texto publicado na anterior edição do JL, especialmente dedicado à autora. 

Além do mais, as aulas sobre Maina Mendes coincidiram com a supressão, em Portugal, das Novas Cartas Portuguesas (1972) - a obra que Maria Velho da Costa escreveu com Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta - e com o subsequente processo em tribunal conhecido como o das “Três Marias”, de grande impacto internacional, antes da revolução do 25 de Abril. 

Em Londres, Helder Macedo redigiu anonimamente a carta de protesto assinada por vários escritores ingleses, solidarizando-se com as autoras, que foi publicada, com grande destaque, no Times. “[A carta] chamava a atenção para a importância não só do feminismo, mas do feminismo como sendo uma causa de todos, mulheres e homens”, conta. 

Outro momento “extremamente importante” foi a publicação da tradução inglesa das Novas Cartas Portuguesas (The Three Marias: New Portuguese Letters), em 1975, lembra ainda Helder Macedo. Mais tarde, aquando da sua passagem pelo King’s College, Maria Velho da Costa viria a conhecer pessoalmente as tradutoras.

Margarida Lages, diretora do Arquivo e Biblioteca do Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), também relembra o episódio das “Três Marias”, notando que o 

processo em tribunal está “amplamente documentado” no arquivo diplomático por força da repercussão internacional que o caso teve.

Margarida Lages conheceu pessoalmente Maria Velho da Costa na década de 1990, no então Instituto Camões. Na altura, desempenhava o cargo de diretora de Serviços de Ação Cultural Externa e a autora de Casas Pardas era técnica superior. Trabalharam juntas durante cerca de um ano, entre 1996 e 1997. “Era uma personalidade única. Tinha uma forma própria de encarar a realidade e era crua e direta na forma como se relacionava. Na vida profissional era rigorosa e criativa”, recorda.

O embaixador José de Bouza Serrano também se cruzou com Maria Velho da Costa no Camões I.P.. Corria o ano de 2003. Bouza Serrano vinha ocupar o cargo de vice-presidente, a convite da então presidente Maria José Stock. Maria Velho da Costa estava a perfazer os poucos meses que restavam para pedir a reforma. Enquanto um aguardava para assumir funções, aproveitando para se inteirar dos dossiês, e o outro se preparava para a saída, trabalharam frente-a-frente no mesmo gabinete. 

“No ano anterior, em 2002, tinha assistido à cerimónia de entrega do Prémio Camões a Maria Velho da Costa, sabia muito bem quem ela era, tinha lido um livro ou outro, mas não tínhamos intimidade nenhuma”, conta o atual inspetor-geral da Inspeção-Geral Diplomática e Consular do MNE. Foi durante esse tempo, cerca de um ano, em que foram “colegas de carteira”, que conheceu mais de perto Maria Velho da Costa, como pessoa e também como escritora. “Foi realmente um convívio privilegiado. Aprendi imenso com ela. Ela não era uma pessoa muito fácil… Era reservada, mas naquela intimidade - em que éramos ‘colegas de carteira’ e ela não tinha que me provar nada - era tudo muito solto”, diz. E à medida que a recorda, num misto de entusiasmo, admiração e ternura, vai repetindo: “Falámos muito… Falámos muito...”

Falavam de literatura, do processo das “Três Marias” - que o tinha “marcado muito” -, mas também da vida, das pessoas que tinham em comum, dos acontecimentos do quotidiano. “Como ela era júri de vários prémios literários, recebia caixotes cheios de livros e tinha que os ler. Então lia e comentava comigo. [risos] Ela tinha imensa graça a descrever as coisas, a contar histórias”, recorda. “Lembro-me que ela tinha uma cadelinha pug que tinha autorização para entrar no Lux com ela”, conta, entre gargalhadas. 

Bouza Serrano começou também a interessar-se mais pela sua obra literária, mergulhando naquela escrita “muito rica e inovadora”. Muitos dos livros foram-lhe oferecidos pela própria autora, com as devidas dedicatórias. “Em O Amante do Crato, numa edição da Asa com um desenho do João Cutileiro, escreveu assim: «A José de Bouza Serrano, meu novo 

companheiro de carteira. Afectuosamente, Maria Velho da Costa». Também me dedicou o Missa in Albis: «Para José de Bouza Serrano, Missa in Albis, livro com paciência e razão. E a muita simpatia da Maria Velho da Costa»”, partilha. E, em todos eles, a mesma inscrição: «Lisboa, Instituto Camões, 2003». Testemunha do tempo e do lugar de um encontro que o marcou para sempre. “Ia eu para uma coisa ‘maçadora’, de trabalho, e de repente tenho o privilégio de ter uma companheira de carteira notável, que me ensinou tanto. Foi realmente uma experiência única”, garante. “Guardo uma grande ternura por uma figura que era, de facto, extraordinária e que tive o prazer de conhecer melhor por causa deste convívio”.

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A RENOVAÇÃO DA LÍNGUA

Do ponto de vista literário, a renovação do trabalho estilístico da língua portuguesa, que inaugurou novos horizontes sintáticos e semânticos, é um dos traços essenciais da obra de Maria Velho da Costa. “Ela tinha uma imensa curiosidade linguística”, refere Helder Macedo. “Uma das suas qualidades enquanto escritora é ter uma atenção de muito pormenor até aos micro-significantes das palavras. São quase estruturas musicais que ela, embora essencialmente prosadora, integrava na sua escrita como se fosse uma poeta”, explica. 

Essa curiosidade levou-a, por exemplo, a interessar-se pelo crioulo, um fascínio que pôde desenvolver quando foi adida cultural na embaixada portuguesa em Cabo Verde, de 1988 a 1990, por nomeação do MNE no primeiro governo de Cavaco Silva.

José de Bouza Serrano também salienta a “extraordinária riqueza linguística” da escritora. “Era uma efervescência de palavras”, afirma, enumerando outras qualidades como a “grande bagagem cultural” e as “preocupações sociais”. “É uma escrita muito rica e inovadora. Toca em muitas coisas. Ela tinha uma grande cultura geral e, na construção de uma frase, tudo isso aparece naturalmente. Não conheço outra pessoa que escreva como ela. Gostava que tivesse feito ‘escola’, mas é difícil... Só alguém com uma grande cultura e com preocupações sociais pode escrever daquela maneira”, considera. 

Por tudo isso, lamenta que nos últimos anos a sua obra tenha sido “esquecida” e não só espera vê-la amplamente reeditada como lança um desafio: “Achava giríssimo alguém voltar a encenar o Madame. Seria uma bela e merecida homenagem”. 

Madame foi a única experiência de Maria Velho da Costa no teatro, em 2000. Desafiada pelo encenador Ricardo Pais a escrever o texto para duas atrizes, uma portuguesa (Eunice Muñoz) e outra brasileira (Eva Wilma), a autora criou para o palco o encontro entre duas das mais 

emblemáticas personagens femininas do romance em língua portuguesa do século XIX: Maria Eduarda, de Os Maias, de Eça de Queirós, e Capitu, de Dom Casmurro, de Machado de Assis.

Se é verdade que houve um período em que Maria Velho da Costa foi uma figura de proa das letras portuguesas, inclusivamente distinguida com inúmeros prémios, também é verdade que nos últimos anos a sua obra esteve menos presente e que teve sempre o epíteto de uma autora ‘difícil’ de ler. Helder Macedo reconhece a dificuldade. “É extremamente criativa em termos linguísticos, usa a linguagem de uma maneira muito aguçada, tem uma sintaxe complexa, elaborada... Não é de facto fácil, mas também o que ela tinha para dizer não era fácil”, diz, acrescentando: “É difícil mas vale a pena o esforço”. Até porque, para o escritor e crítico literário, não há dúvidas quanto ao seu legado: “Ela é uma escritora de primeiro plano. Nas últimas décadas, inesquecíveis serão a Sophia de Mello Breyner na poesia, a Agustina Bessa-Luís e a Maria Velho da Costa”. 

 

O texto foi publicado originalmente em Jornal de Letras, edição n.º 282, de 17 a 30 de junho de 2020, Suplemento da edição nº 1297, ano XL, do JL, Jornal de Letras, Artes e Ideias com a colaboração do Camões, I.P..