A Cátedra Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara do Camões, inaugurada na Universidade de Goa a 23 de novembro de 2016, na presença de S.E. a Secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação, Dra. Teresa Ribeiro, encontra-se já na segunda fase da sua vigência. O 2.º triénio, iniciado há alguns meses, tem sido marcado negativamente pelo surto pandémico da Covid-19 que, de forma devastadora, afeta o subcontinente indiano e que, desde março, tem inviabilizado a normal prossecução das atividades académicas e, em particular, do plano de iniciativas programadas no âmbito da Cátedra.
Esta nota introdutória não ofusca, contudo, as enormes expetativas criadas aquando da celebração do Protocolo de Cooperação estabelecido entre o Camões, I.P. e a Universidade de Goa em abril de 2016, e renovado a 6 de setembro de 2019, dado os excelentes resultados alcançados e, sobretudo, a boa resposta obtida junto do meio académico e do público em geral.
Na verdade, a criação da Cátedra Cunha Rivara, a única cátedra do Camões em toda a Ásia, constituiu o reconhecimento da consolidação dos Estudos Portugueses, na ainda jovem, mas muito progressiva Universidade de Goa onde, e após um interregno de alguns anos (2001-2005), se desenvolvem os únicos cursos de graduação em Português (B.A., M.A. e M.Phil) em todo o subcontinente indiano, cursos livres e opcionais, perfazendo o total anual de aproximadamente 300 alunos inscritos, registo que claramente beneficia da oferta dos cursos opcionais conduzidos pelos professores visitantes da Cátedra Cunha Rivara.
O Departamento de Português e de Estudos Lusófonos é o único em toda a Índia, e um dos poucos na Ásia, a garantir um conjunto de programas académicos tão avançados, através de um corpo docente qualificado e permanente, composto atualmente por quatro professores assistentes locais, formados pelo próprio Departamento, um professor assistente português, com doutoramento, e o leitor do Camões, coordenador da Cátedra e responsável pelo Centro de Língua Portuguesa em Pangim.
Tendo a designação da cátedra recaído no nome de Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara (convém lembrar que funcionou durante alguns anos da década de 90, na Universidade Jawaharlal Nehru em Nova Deli a Cátedra Diogo do Couto, assegurada pela historiadora e investigadora Professora Inês Zupanova), figura eminente na construção dos laços culturais entre Portugal e a Índia e que agrega, ainda hoje, o reconhecimento consensual de ambos os povos, procurou-se com a Cátedra Cunha Rivara colmatar as lacunas existentes nos programas de estudos portugueses da Universidade de Goa, abrindo linhas de investigação fundamentais na história das relações culturais indo-portuguesas.
Nesse sentido, foram convidados para o 1.º triénio cinco especialistas portugueses, Hugo Cardoso (Centro de Línguística da Faculdade de Letras de Lisboa), Susana Sardo (Universidade de Aveiro-INET-md), Amélia Polónia (CITCEM-Faculdade de Letras da Universidade do Porto), Walter Rossa (CES-Universidade de Coimbra) e Ângela Barreto Xavier (Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa), que para além de assegurarem cursos opcionais creditados, realizaram conferências e desenvolveram contactos com alunos, investigadores e outros docentes indianos.
Neste 2º triénio 2020-2022, ambiciona-se desenvolver um programa doutoral interdisciplinar que, não sendo apenas dirigido a goeses, possa atrair alunos externos, envolvendo também o mundo indico-asiático, garantindo-lhes uma formação académica avançada (PhD) sobre cultura portuguesa em inglês e em português, privilegiando as áreas da história, da etnomusicologia, dos estudos literários comparatistas, da linguística, e muito em particular o contacto linguístico entre o português e os idiomas indianos, do património arquitectónico e artístico. Encontra-se já na forja a produção de um livro editado pelo conhecido antropólogo Robert Newman que reúne ensaios dos professores da Cá- tedra Cunha Rivara,, numa publicação da Imprensa Universidade de Coimbra (IUC), que conta com o apoio do Camões, I.P. e da Universidade de Goa.
Deseja-se recolocar Goa, através da Cátedra Cunha Rivara, no centro dos estudos indo-portugueses, e tal como nos já longínquos e imemoriais tempos do Colégio de São Paulo, atrair estudantes e investigadores das regiões asiáticas mais próximas e recuperar os espaços de diálogo com o Oceano Índico, assim como desenvolver parcerias com outras Cátedras Camões, espalhadas pelos cinco continentes. Cabe-nos a responsabilidade de honrar a memória de Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, um proeminente orientalista, feito mais pela força das circunstâncias do que por inicial convicção, nas palavras do historiador goês Gerson da Cunha, um “distinguished Portuguese savant” que, a exemplo de outros “reinóis” constataria que a realidade linguística e cultural da Goa lusitana estava longe de corresponder às expetativas que nutriu até o dia da partida de Lisboa, a 23 de setembro 1855, acompanhando o novo governador-geral António César de Vasconcellos Correia, Visconde de Torres Novas, para assumir ele o cargo de secretário-geral do Governo do Estado da Índia até 1870, vindo a ser substituído então por Tomás Ribeiro, outro ilustre orientalista.
Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, bacharel formado na Faculdade de Medicina e Cirurgia pela Universidade de Coimbra, professor de filosofia no liceu de Évora e bibliotecário da Biblioteca de Évora, paleógrafo aprovado na escola da Torre do Tombo de Lisboa, desenvolveu para além das funções administrativas de secretário-geral do Governo do Estado da Índia, um trabalho ímpar na cultura em Goa. “Encarregado de escrever a história dos portugueses no oriente em continuação dos trabalhos históricos de Barros e Couto”, como regista o Anuário do Liceu Nacional de Nova Goa elaborado por Alberto Feliciano Marques Pereira (1895), Cunha Rivara cedo revelou uma especial simpatia e sensibilidade pelas línguas e culturas locais.
O “Ensaio histórico da língua Concany” (1857), autêntica cruzada na defesa das línguas locais cuja aprendizagem exortaria juntos dos futuros professores no discurso proferido na abertura da Escola Normal Primária de Nova Goa, a 1 de outubro de 1856, o Arquivo Português-Oriental (1857-1876), e que consiste na transcrição por ordem cronológica dos documentos que encontrou sobre a presença dos portugueses na Índia, a edição entre 1866 e 1869 do periódico mensal “Chronista de Tissuary”, as traduções realizadas e as influências que exerceu sobre os historiadores goeses foram sem dúvidas motivos que justificariam cabalmente a atribuição da Comenda da Ordem de S.Tiago, pelo mérito científico, literário e artístico, a 14 de abril de 1866. Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara foi reitor do Liceu Nacional e comissário dos estudos, por portaria provincial de 6 de junho de 1866, cargo que assumiu até 22 de abril de 1877, data do seu regresso definitivo a Portugal, após uma vida de 22 anos em Goa, dedicada a promover os estudos indo-portugueses e o respeito entre os povos.
Este texto foi originalmente publicado no Encarte Camões n.º 285 de 9 a 22 de setembro de 2020; suplemento da edição n.º 1303, ano XL, do JL, Jornal de Letras, Artes e Ideias com a colaboração do Camões, I.P.