Por Carlos Leone
Fernando Gil (1937-2006) é um dos nomes maiores do pensamento e do ensino filosófico português no século XX. Poucos podem ser considerados autores de uma obra comparável à sua, pelo que não será tanto na relação com o meio português como na sua singularidade que se deve procurar o esclarecimento da sua influência e da relevância que adquiriu no espaço público português a sua morte, a 19 de março de 2006.
Nascido e educado em Moçambique, Fernando Gil só abandonou o Liceu Salazar de Lourenço Marques (e seu o círculo informal de estudantes de marxismo, onde participaram outros nomes maiores das ciências sociais e humanas portuguesas, como Hermínio Martins) quando veio para Lisboa cursar Direito. Formado em 1959, não abdicou da sua vocação filosófica. Estreou-se como autor em 1961 com Aproximação Antropológica (Guimarães Editores, Lisboa,) tendo rapidamente partido para Paris, onde concluiu uma segunda licenciatura, em Filosofia, e se doutorou em Lógica (La Logique du Nom, até hoje inédito em Português) já em 1971. Aí continuou a traduzir, como já fizera em Lisboa: ficção (sobretudo ligado à editora Portugália) e ensaio (Merleau-Ponty, Jaspers, entre outros) mas, sobretudo, deu início ao seu trabalho universitário, continuado no imediato pós-25 de Abril de 1974 na Universidade de Lisboa.
A trajetória universitária é decisiva, e o seu percurso em Portugal faz-se em ligação à Universidade Nova de Lisboa, a qual integra ainda no período inicial desta e onde rapidamente congrega no Departamento de Filosofia um conjunto de jovens licenciados que são, hoje, nomes relevantes da cultura filosófica portuguesa (em particular através dos cursos de mestrado, em cuja implementação foi pioneiro, e na orientação de dissertações de doutoramento). Então, na segunda metade da década de 1970 e inícios da de 1980, a sua evolução intelectual já o afastara da procura de uma teoria da subjetividade como aquela com que se estreara em 1961; nos trabalhos publicados em revistas como Análise Social, Raiz e Utopia, Cultura, Prelo, entre outras, bem como na coordenação da Enciclopédia Einaudi (versão portuguesa, iniciada em 1983 pela INCM) e ainda na direção do Grupo de Investigação de Filosofia e Epistemologia, do qual emergem publicações várias (Revista de Filosofia e Epistemologia, Estudos Filosóficos, e, até hoje, Análise), o seu percurso estava cada vez mais norteado pela questão da objetividade.
Embora a publicação dos seus trabalhos tenha habitualmente sido feita primeiro em Francês (viveu em Paris até à sua morte, tendo ensinado e investigado na École des Hautes Études en Sciences Sociales), as suas obras estão todas disponíveis em Português (quase todas publicadas na Imprensa Nacional – Casa da Moeda). E o que nelas se nota é, sobretudo após Provas (INCM, 1986, volume resultante da prova de agregação em Filosofia do Conhecimento), uma elaboração constante e cada vez mais sofisticada do problema da objetividade do conhecimento, que conhecerá o seu momento decisivo com a publicação em França, em 1993, de Tratado da Evidência (INCM, 1996). A compreensão do que entendemos como «evidente» e as relações do que é «evidente» com o sujeito particular em que se produz a evidência são, por assim dizer, a versão adulta do projeto inicial de Aproximação antropológica.
Como foi notado por Miguel Real na revista Prelo (3ª série, nº 1, INCM, 2006), naquele que foi o primeiro conjunto de trabalhos relevante sobre a sua obra, a sua relação com a cultura filosófica e científica portuguesa é singular: destacando-se dela pela sua especialização, contribuiu por isso mesmo para a refazer noutros moldes ao influenciar as duas gerações universitárias com que mais trabalhou (a do GIFE e a de finais da década de 1980, princípio da de 1990, como no caso do atual diretor da Análise, André Barata). Não é de estranhar que assim seja, pois Fernando Gil fez parte de um vasto contingente de «estrangeirados» da cultura portuguesa que marcou decisivamente a história intelectual e institucional (política) do século XX em Portugal.
Prémio Pessoa em 1993, Fernando Gil é consagrado: já tinha recebido o Prémio PEN por Mimésis e Negação, e a sua influência científica junto de centros de decisão políticos e não apenas científicos é invulgar, agraciado oficialmente em Portugal e em França. Colabora fora da sua área de competência especializada: com Hélder Macedo (Viagens do Olhar, igualmente Prémio PEN), em debate com o neurocientista António Damásio (crítica a O Erro de Descartes, em Análise nº19, 1996), em polémica ideológica com alguns dos seus amigos mais próximos (Manuel Villaverde Cabral, Eduardo Prado Coelho) a propósito da questão da ocupação do Iraque em 2003 e da questão civilizacional existente entre o ocidente laico e o islamismo militante (Impasses, Publ. Europa-América, Lisboa, 2003, em coautoria com Paulo Tunhas), em diálogo com o musicólogo Mário Vieira de Carvalho (A Quatro Mãos, INCM, 2005). Em simultâneo, coordenava a Rede Interdisciplinar de Centros de Investigação da UNL e continuava a sua vida académica intensa, sendo Professor Convidado de universidades de vários continentes.
Depois da atenção que a sua morte recebeu por parte da comunicação social, começam as iniciativas de maior relevância. Além do dossier in memoriam que lhe é dedicado no nº1 da Prelo, já referido, 2007 trará novos estudos e edições que a sua obra, de futuro como já desde há tanto tempo, não cessará de suscitar.