Por Maria Manuela Gouveia Delille
Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e tradutor literário (Bragança, 24.12.1905 – Coimbra, 09.03.1987). Nascido de uma família transmontana de origem humilde, origem essa que sempre assumiu com manifesto orgulho, estudou Filologia Germânica, entre 1922 e 1927, na Universidade de Coimbra e, de abril de 1927 ao verão de 1929, como bolseiro da Fundação de Alexandre de Humboldt, frequentou a Universidade de Frederico Guilherme (atual Universidade de Humboldt) em Berlim, onde, entre outros, foram seus mestres os germanistas Julius Petersen e Max Herrmann, o anglista Alois Brand e o filósofo Max Dessoir.
Veio concluir a licenciatura a Coimbra em outubro de 1929, apresentando uma dissertação intitulada Do Elemento Social no Drama Alemão a partir de Lessing. Como bolseiro da Junta de Educação Nacional voltou nesse mesmo ano à universidade berlinense, na qual prosseguiu os estudos de Germanística e Filosofia e exerceu, de 1931 a 1933, as funções de leitor de Português no Seminário de Línguas Românicas. Em outubro de 1933, já regressado a Portugal, tomou posse, na Faculdade de Letras de Coimbra, do lugar de professor auxiliar de Filologia Germânica, tendo sido encarregado de cursos de Literatura Inglesa e de Literatura Alemã. Em fevereiro de 1942 foi contratado como professor extraordinário (vindo o contrato a ser renovado sucessivamente até abril de 1969), e em maio de 1947 submeteu-se a provas de doutoramento, tendo apresentado a dissertação A Vida e a Poesia de Hölderlin (2.ª edição em 1971, sob o título Hölderlin). Entretanto iniciara, desde 1938 – ano em que deu a lume nas páginas da Revista de Portugal, dirigida pelo seu antigo colega e amigo Vitorino Nemésio, as primeiras versões portuguesas de poemas de Rainer Maria Rilke –, uma intensa atividade como tradutor e divulgador de importantes obras literárias em língua alemã, da qual destacamos como principais marcos as seguintes traduções: R. M. Rilke, Poemas (1942) e A Balada do Amor e da Morte do Alferes Cristóvão Rilke (1943), Gerhart Hauptmann, A Ascensão de Joaninha. Sonho Dramático em Dois Atos (1944), Friedrich Hölderlin, Poemas (1945), Johann Wolfgang Goethe, Poemas (1949), Rainer Maria Rilke, Os Cadernos de Malte Laurids Brigge (1955), Friedrich Nietzsche, Poemas (1960), Bertolt Brecht, Poemas e Fragmentos. Sep. da Vértice (1962), R. M. Rilke, Poemas II. Dispersos e Inéditos de 1906 a 1926 (1967), Nelly Sachs, Poemas (1967), R. M. Rilke, As “Elegias de Duíno” e “Sonetos a Orfeu” (1969), B. Brecht, Poemas e Canções (1975) e Georg Trakl, Poemas (1981). “Almocreve da cultura”, era com este topos modestiae que Paulo Quintela gostava de designar a ação notável que desenvolveu ao longo da vida como mediador entre culturas, muito particularmente entre a cultura alemã e a portuguesa, ação essa que lhe valeu o reconhecimento não só do Instituto Goethe de Munique, o qual lhe atribuiu em 1960 a Medalha de Goethe em prata e, em 1973, a Medalha de Goethe em ouro, mas também da Fundação F.V.S. de Hamburgo, que lhe concedeu em 1985 o Prémio Europeu de Tradutores. Plenas de rigor e ao mesmo tempo de criatividade poética, as traduções acima referidas deram um impulso decisivo à divulgação em Portugal da literatura e da cultura alemãs, contribuindo muito para dinamizar e europeizar o meio literário da época. Menção especial é devida às versões admiráveis que nos deixou de poemas de Goethe, Hölderlin e sobretudo de Rainer Maria Rilke, as quais foram objeto de intensa receção na lírica portuguesa da segunda metade do século XX.
Cidadão empenhado e defensor convicto da liberdade de pensamento e expressão, colocou-se abertamente ao lado dos estudantes nas crises académicas de 1962 e 1969, tendo sido eleito em 1964 sócio honorário da Associação Académica de Coimbra. Em abril de 1969, tomou posse de professor contratado além do quadro da Faculdade de Letras de Coimbra e, em outubro de 1970, foi contratado como professor além do quadro, equiparado a catedrático. A 19 de abril de 1975, a poucos meses da jubilação, veio finalmente a obter a nomeação definitiva, tão longa e justamente ansiada, de professor catedrático por distinção. Dada a sua conhecida posição de discordância crítica, quando não de declarada rebeldia, em relação ao sistema ditatorial vigente no país até à Revolução de abril, não é de estranhar que os governos de Salazar e de Caetano se houvessem recusado de forma obstinada a conceder-lhe uma nomeação que fora prática universitária relativamente frequente no tempo do Antigo Regime.
Sócio Correspondente da Classe de Letras da Academia das Ciências desde 1971, foi laureado com o título de Grande Oficial da Ordem de Instrução Pública em 1982, com o grau de Comendador da Ordem da Liberdade em 1983, e, no ano de 1986, com o grau de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique.
O perfil de Paulo Quintela não poderia ficar completo sem uma referência à ação desenvolvida como diretor artístico e encenador do Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC), de que aliás foi um dos fundadores. Se, no campo germanístico, a atividade translatória em muito sobreleva o trabalho de caráter científico e ensaístico, como aliás a publicação das Obras Completas (1996-2001) bem documenta, o magistério cultural exercido por Paulo Quintela no TEUC sobre sucessivas gerações de estudantes de todas as Faculdades durante trinta anos – de 1938, data da fundação daquele organismo académico, até 1968 – constituiu um complemento privilegiado da docência universitária. Sob a sua direção segura e esclarecida, o TEUC soube afirmar-se no meio universitário português, durante as difíceis décadas de 40, 50 e 60, como escola ímpar de teatro e de cultura, de camaradagem fraterna e de experiência cívica. Para além de algumas representações de elevado mérito de peças de autores nacionais (Camões, Raul Brandão, José Régio, Miguel Torga) e estrangeiros (Calderón, Molière, Goethe, García Lorca), Paulo Quintela, em encenações brilhantes, em que a exigência e o saber se uniam a uma grande força inventiva e lúdica, levou o agrupamento não só a representar de um forma viva e inteiramente nova os autos vicentinos (Trilogia das Barcas, Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro, Farsa de Inês Pereira, Auto da Feira, Auto da Alma, Auto da Índia, Breve Sumário da História de Deus), como a montar três espetáculos muito raros no panorama teatral português do tempo – as tragédias clássicas Medeia de Eurípides (1955), Antígona de Sófocles (1961) e Prometeu Agrilhoado (1967) de Ésquilo, tendo o TEUC conquistado, tanto com Gil Vicente como com os trágicos gregos, merecidos prémios e louvores em todo o país e no estrangeiro, nomeadamente nos festivais internacionais organizados pelo Instituto Délfico, as chamadas Delfíadas, primeiro em Mogúncia em 1950, depois sucessivamente em Friburgo na Brisgoia, em Verona, em Genebra, em Saarbrücken, em Nancy, em Bristol e, por fim, no ano de 1961, em Coimbra, sempre numa estimulante competição com grupos congéneres europeus. A par destes espetáculos, foi também o TEUC o primeiro a apresentar ao público português coros líricos falados, através dos quais Paulo Quintela procurava, nas palavras de Deniz Jacinto, «para além das virtudes imediatas da aquisição duma técnica vocal, descobrir toda a beleza poética dum texto e as vias mais adequadas à sua exteriorização oral». Manuel Alegre resumirá assim o inestimável trabalho de formação teatral, estética, cultural e cívica levado a cabo por Paulo Quintela nos longos ensaios e nas encenações do TEUC: «Nada sabíamos da língua portuguesa / e então sílaba a sílaba ele ensinou-nos / a música secreta das vogais / a cor das consoantes a ondulação o ritmo / o marulhar das frases e o seu / sabor a sal. / E também como pisar um palco / como falar como calar e sobretudo / como sair de cena e entrar / no grande teatro deste / mundo. / Porque tudo era proibido e ele nos disse / que tudo pode ser ousado / desde que se aprenda a entrar a tempo / a colocar a voz e a não perder / a alma.»
Obras
Obras Completas. Organização de Ludwig Scheidl, António Sousa Ribeiro, Carlos Guimarães, Maria Helena Simões. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 5 volumes, 1996-2001 (I – “Hölderlin” e Outros Estudos; II – Traduções I; III – Traduções II; IV – Traduções III; V – Gil Vicente e Teatro Vário).
Bibliografia
Paulo Quintela, Curriculum Vitae, Coimbra, 1970; “Perfil de Paulo Quintela”, Vértice, vol. XXXIII, número 349, Fevereiro de 1973, pp. 188-196; Deniz Jacinto, “Saudação a Paulo Quintela”, in: Homenagem a Paulo Quintela, Porto, Editorial Inova, 1974, pp. 37-41; Miscelânea de Estudos em Honra do Prof. Paulo Quintela: Biblos. Revista da Faculdade de Letras, volumes LI, 1975, e LII, 1976; Paulo Quintela. Exposição Bibliográfica. Organização e Catálogo por Maria Alice Falcão Curado e Maria Armanda de Almeida e Sousa, Coimbra, 1986; Cristóvão de Aguiar, Com Paulo Quintela à Mesa da Tertúlia. Nótulas Biográficas, Coimbra, 1986, e Gente Grada de Coimbra: Paulo Quintela (com mais detença); Miguel Torga, Vitorino Nemésio e Manuel Alegre (de relance), conferência inédita; Manuel Alegre, “Paulo Quintela”, in: M. A., Coimbra Nunca Vista, Lisboa, Dom Quixote, 1995, p. 67.